Manifestação pela revisão do acordo ortográfico

Em favor da revisão do acordo
ortográfico: três ordens de razões ‘culturais’
Isabel Pires de Lima,
professora universitária e deputada do Partido Socialista [Portugal]

Compreendo que o Governo português tem um compromisso
político-diplomático, assumido em 2004 pelo Governo de então, que dificilmente
lhe permitiria não ratificar o 2.º Protocolo Modificativo ao Acordo
Ortográfico, independentemente de discordâncias que porventura tenha quanto ao
seu conteúdo. Certamente por isso, e não apenas por questões de carácter
pragmático ligadas à sua implementação no terreno, a presente ratificação
faz-se acompanhar do pedido de uma moratória de seis anos para a sua aplicação.
Teria sido preferível pedir mais tempo, que, a meu ver, o Governo deveria
aproveitar para procurar encontrar consenso diplomático com vista à revisão do
Acordo.

E por que precisa ele de ser "emendado"? Por várias ordens de razões,
todas culturais, em última análise:

1 – Por razões técnico-linguísticas
e culturais:

Como já foi abundantemente demonstrado pela comunidade linguística, pelo menos
desde 1990, o Acordo manifesta inúmeras fragilidades. Relevo apenas dois
aspectos:

a) O facto de acabar por nem sequer se revelar uma "versão fraca" de
unificação ortográfica, como se pretendia, mas antes uma versão permissiva,
erigindo o princípio da facultatividade excessiva, o qual vai contra o próprio
conceito normativo de ortografia, originando nomeadamente a possibilidade do
uso de duplas grafias dentro do mesmo país, isto é, abrindo a porta à
heterografia.

b) O facto de recorrer a uma diversidade de critérios na simplificação de
preceitos ortográficos, com forte desrespeito pela dimensão patrimonial da
língua, nomeadamente a sua dimensão histórica etimológica; ora a língua, é bom
lembrá-lo, é definida na Lei de Bases do Património Cultural como um bem
cultural, que, portanto, importa preservar e salvaguardar.

2 – Por razões
político-diplomáticas e culturais:

Quase vinte anos volvidos sobre o Acordo e num quadro bem distinto no seio da
CPLP, no que à situação político-social de Angola e Moçambique diz respeito e
também no que ao caso particular de Timor se refere, impor-se-ia uma revisão do
Acordo que atentasse à urgente necessidade de uma descrição linguística das
variantes africanas do português, muito particularmente no caso daqueles dois
países africanos que envolvem cerca de 30 milhões de falantes, cuja norma
ortográfica é, recorde-se, a do português europeu. Uma tal descrição permitiria
que o Acordo não se limitasse a ser o que na prática é, um acordo entre o
Brasil e Portugal, mas um efectivo "acordo" entre pares.

Isso poderia ser acompanhado da garantia, hoje não assegurada, de que todos os
países da CPLP, envolvidos numa vontade renovada, poriam o Acordo em
funcionamento em simultâneo.

Ora, não estando garantida tal simultaneidade, como ficou claramente patenteado
nas declarações do ministro da Cultura de Moçambique aquando da recente visita
do nosso Presidente da República àquele país, corre-se o risco perverso de se
transformar um instrumento que se quer estratégico de agregação num possível
factor de desagregação com a eventual criação de outros blocos de variantes
linguísticas que coloquem, por hipótese, Portugal e o Brasil de um lado e os
PALOP [País Africanos de Língua Portuguesa] de outro.

Acresce a tudo isto que, entre 1990 e hoje, não foi cumprido um objectivo
estipulado pelo Acordo, prévio à sua entrada em vigor: a organização e
publicação de um Vocabulário Técnico- -Científico que impedisse ou ajudasse a
travar a forte deriva lexical que se vem sentindo entre a norma europeia e a
brasileira.

3 – Por razões económicas e
culturais:

A expansão internacional de uma língua não se faz nem por facilitações
ortográficas bebidas em critérios fonéticos em detrimento de critérios
etimológicos nem por unificações ortográficas estabelecidas por decreto, como
as línguas inglesa ou francesa abundantemente revelam, mas sim pelos conteúdos
que for capaz de veicular (através da literatura, da música, enfim da cultura).
É por aí que passa uma verdadeira política de internacionalização de uma língua
e não pelo logro da facilitação fonética da ortografia. Logro tanto maior
quanto o critério acima referido da facultatividade vai criar maior dúvida grafémica
em quem pretende aprender o português. Não será o Acordo que fará o português
ganhar um único leitor, um só falante ou o direito a ser língua veicular num
único forum internacional.

Acresce a este facto que o mercado do livro no espaço lusófono, e muito
especialmente nos PALOP, tornar-se-á mais difícil de conquistar para a
indústria editorial portuguesa e, consequentemente, os conteúdos culturais
portugueses que os nossos livros veiculam terão mais dificuldade de penetração,
designadamente ao nível das indústrias culturais e criativas, nos PALOP. Em
síntese, a internacionalização da cultura portuguesa em África será mais
difícil.

Estou ciente de que o bom senso político-cultural acabará por imperar através
de acções concertadas que apelem à revisão do Acordo: revisão por certo
desejada pela maioria dos linguistas e por todos quantos têm responsabilidades
na defesa do património cultural; revisão com certeza esperada por alguns dos
PALOP.|
Diário de Notícias,
Lisboa, 2 jun. 2008.

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